Era uma vez um menino pretinho que morava dentro do bambuzal, no meio da mata. Nasceu preto como a boca da noite da mata mais escura. Mais preto e bonito que a semente do mamão e a casca da jabuticaba mais doce. Seu nome era Romão.
No começo, ele tinha duas pernas e vivia cheio de medo observando tudo de dentro do bambuzal. Mas não colocava os pés fora de sua casa de bambu. Era um menino calado, tímido, olhar tristonho, brincava pouco e sozinho. Morava no meio do bambuzal, onde ficava protegido e disfarçado. Lá era seu mocambo, como dizia seus pais, que o colocaram naquele lugar antes de serem escravizados por um coronel violento, caçador que os retirou da mata. Por isso, vivia com medo. Quando vinha a ventania com um assovio arrepiante anunciando a chegada do caçador, o Romãozinho se escondia no meio do bambuzal e encolhia as pernas.
Daí que certo dia, daqueles que a vida apronta para gente, uma surpresa, teve o menino amedrontado. Naquela mata, onde morava, por vezes muitos caçadores, lenhadores e madeireiros lá apareciam. Sempre retirando coisas, cortando a mata. Com seus machados macabros e afiados, com suas foices que cortavam o fio do pensamento, ceifando bambu e galho, colocando fogo na mata, retirando ervas, penas e frutos, serrando madeira para alimentar as caldeiras e fornos da cidade. O caçador não se importava e cortava com seu machado do início da manhã até o fim da tarde.
Foi então que aconteceu o inesperado. O menino acordou cedo de sobressalto, com o barulho do machado fazendo poc, poc, poc, perto do bambuzal, se aproximando. Espiou pela fresta do seu bambuzal-casa. A manhã estava com uma neblina fria, de arrepiar a espinha das costas, não dava para ver a distância do caçador e seu rumo. De longe ouvia o caçador cortando como fazia todo dia. Era um caçador grandalhão, com um machado enorme e reluzente, prateado, que quase cortava a árvore num só golpe. O menino pretinho sentiu que o barulho aproximava mais e mais. Poc! Poc! Poc! O barulho do machado foi aumentando, ficando mais perto do bambuzal. Poc! Poc! Poc! Poc! Poc! Poc! O barulho foi ficando tão perto, mas tão perto que de repente: Poc! Ouviu-se um barulho estridente. O machado do caçador cortara com um golpe um monte de bambus. Romão pretinho se viu sem proteção. Saiu correndo rapidamente como nunca. Logo o menino que era tão quieto, não era de briga e vivia em paz dentro do bambuzal, não perambulava pela mata, nem ligava para os bichos, nem mesmo se importava com o trabalho de caçada dos caçadores, nem da retirada da madeira… saiu tão rápido que parecia que ele tinha uma perna só. O caçador, assustado com aquele menino de uma perna em forma de redemoinho, deu no pé. Deixando para trás os galhos cortados, a caça que havia caçado dentro da mata. O menino também se surpreendeu. Descobriu que tinha uma velocidade imensa, e sua perna transformou-se em uma só e veloz. Um bem-te-vi que voava por ali e vira toda aquela cena, avisara a bicharada que se reuniu em círculo em volta de menino, admirando seu redemoinho em forma de perna.
Foi então que um papagaio o viu e disse para toda bicharada: Ooolha! O saci acordou! O menino então agradecido pelo apelido de saci, jurou para si e para os amigos bichos, defender toda a mata e todos os seus habitantes: insetos, pássaros, plantas, rios, lagos e lagoas.
Desde então, o saci começou a proteger a mata sem dar descanso ao caçador. Conversando com os bichos, aprendeu tudo sobre as ervas e raízes, sobre os frutos, conheceu os segredos da mata, passou a sair de seu bambuzal e conviver com todos os seres dali, com um riso alegre no rosto, saltitante, brincalhão e veloz feito o pensamento. O saci passou a cegar o machado e a foice do caçador, para não cortar mais as árvores, nem caçar os bichos, nem arrancar as ervas sagradas, nem enjaular em gaiolas as aves, nem arrancar as plumagens dos pássaros, e nem sujar os rios de lixo trazidos da cidade pelo caçador. Mas o caçador teimoso, sempre voltava querendo madeira e pena e frutos e ervas e tudo que podia levar. Era o que fazia a mando do coronel, dono das terras próximas da mata. O saci, como um guardião, não deixava sossegado o caçador. Aprendeu a dar um assovio tão alto que assustava quem estivesse perto e girava sua perna de redemoinho. Com o tempo, o saci ganhou de presente do beija-flor um gorro vermelho. Depois apareceu o catitu, porquinho do mato, que lhe deu um cachimbo. Cachimbo que pertencera a um velho e misterioso índio preto que já morrera há muitos anos e sabia todos os segredos da sagrada natureza, das sagradas sabedorias de seu povo antigo que fora dono das terras em tempos remotos. Dizia-se até que aquele sábio fora um pajé respeitado, guardião daquela mata junto com seu povo. O menino aprendeu o dom da mandinga. Estudou como um grande observador os segredos das ervas, os mistérios das águas, compreendeu a força e fases da lua, sabia distinguir perfumes, as formas, e tudo mais sobre plantas e flores. Aprendeu os sabores e saberes das plantas sagradas e das raízes sem esquecer de nenhuma.
Assim, de cachimbo na boca e gorro na cabeça e pernas de redemoinho, saiu o saci pela mata, cuidando dos bichos, das árvores e dos rios e serras. Toda bicharada ficou em festa, pois descobrira que não estavam só. Apostava corrida com os bichos mais ligeiros e ganhava de todos. Começou a ver e conversar com a iara, o curupira, a mãe d’água e Oxum, rainha dos rios e das cachoeiras. O saci brincava com os bichos e inventava advinhas como todo menino gosta de fazer. Desafiava os papagaios, os macacos e outros bichos com quem aprendeu a se comunicar:
O que é o que é que passa na água e não se molha?
E perguntava tanta pergunta divertida de responder. Era tanta a alegria na mata quando o saci saía correndo que até os pássaros paravam pra olhar. Com o passar do tempo, descobriu o saci que, ao soprar o seu assovio, espantava o mau olhado e amansava até o mais feroz dos bichos. Com o assovio, amansava cobra braba, amansava até os bichos gigantes. Descobriu que ganhara poderes mágicos da natureza. Descobriu assim que usar o seu assovio seria bom para espantar o caçador, que matava bicho e cortava a madeira da mata. Ao assoviar no ouvido do caçador, o sujeito desnorteava, errava o caminho, ficava perdido na mata e deixava tudo pra trás. Fugia desesperado e parava de cortar árvore e caçar bicho para pôr na gaiola. O saci, como ficou conhecido, sempre o espantava, vigiando o meio ambiente. Dali em diante, passou a ser o protetor da natureza. Dizem que até cantarolava quando o caçador não conseguia destruir a mata:
Pula saci
Pula pra cá
Pula você
Que eu quero vê
Quem vai correr
Igual Pererê!
Pula de lá
Pula daqui
Que eu já vi
Menino pular
Igual Saci!
Pula pra cá
Pula pra lá
Numa perna só
Que eu quero vê
Quem corre melhor
Pula pra trás
Pula pra frente
Que eu quero vê
Quem pula diferente.
Pula pra cima
Pula pro lado
Que eu quero vê
Quem pula
Mais engraçado
Disse-me o senhor que me contou esta história que o saci tem a velocidade de sete gatos, tem a elasticidade de sete macacos, a força de sete cavalos e a coragem e esperteza de sete onças pintadas e jaguatiricas. O caçador tenta prendê-lo numa peneira, mas até hoje não conseguiu.
Sobre o autor
Ricardo Evangelista. Poeta, Sociólogo e saciólogo, trabalhador do serviço público, 51 anos. Bacharel e Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG (1995); Pós-graduado Lato Sensu em Africanidades e Cultura Afro-brasileira Rede Pitágoras (2018-19); Pós-graduação Lato Sensu em Metodologia de Ensino de Artes da Uninter (2015-16); Livros publicados: 6 livros. Dezenas de cordéis. Diversas premições recebidas.